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Entre as paredes contam-se histórias:

Três casas literárias

Andreia Simão, Mariana Serrano e Paula Suaila (JOA)

     Gaston Bachelard em Poética do Espaço disse que uma casa habita, mas também protege. É o microcosmos do homem onde constelam espaços como “grande berço, ninho, refúgio; espaço de aconchego e de repouso, de devaneio e de sonho.”. É sempre o nosso canto no mundo e o prolongamento de uma personalidade, o espelho do criador que nela viveu.

     Nas casas literárias revisita-se a vida de grandes nomes da literatura. São lugares polimórficos repletos de imagens, pertences, arquivos e de nostalgia de quem testemunhou  o conhecimento, a admiração ou a amizade com os escritores para assim capturar aquele que foi o genius loci dos escritores. As casas de escritores  são, assim, lugares onde se pratica turismo literário, uma fonte de conservação e promoção de ícones e destinos associados às obras.

 

     Trazem os nacionais e estrangeiros pela curiosidade de revisitar leituras. Mostram aos mais jovens de onde surgiram as obras. Dinamizam o monumento e os arredores.  No entanto, a pandemia de covid-19 desnorteou todos os pontos de referência no itinerário cultural, levando a cultura à casa dos portugueses. 

 

     Partindo da casa-memória Bocage, passamos por aquela que outrora foi a residência de Pessoa e chegamos à Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago.

CASA BOCAGE: “Adoram o poeta pela sua irreverência”

     Na rua Edmond Bartissol, junto ao miradouro de São Sebastião, em Setúbal, encontramos a casa Bocage, mais do que uma casa literária dedicada à memoria do Poeta, representa um espaço cultural, que abrange também a memória do fotógrafo Américo Ribeiro. A casa Bocage é, portanto, um dos principais núcleos históricos da região de Setúbal.

 

     Embora a Casa seja cargo integrante da câmara do município, Patrícia Silva Simões, técnica superior da Casa Bocage, tem um papel fundamental na organização deste espaço cultural, e consequentemente, da sua adaptação às mazelas da Covid-19.

     O espaço está dividido em três pisos: o arquivo fotográfico de Américo Ribeiro, a exposição relativa à vida de Bocage e claro, um centro de documentação. Com várias peças Bocagianas originais e muitas delas, insubstituíveis, o que aumenta o valor cultural e turístico da casa, graças à sua exclusividade.

     Com os efeitos do ano que passou, e as limitações que a pandemia trouxe, a casa dedicou-se à dinamização online dos seus conteúdos, e graças a isso os visitantes têm agora acesso a várias obras e documentos, que são renovados num sistema semanal, por forma a fomentar a diversidade e a curiosidade dos visitantes.

     Contudo, de entre as iniciativas online, é de destacar o trabalho dos serviços educativos, que, uma vez que se viram condicionados, sem visitas interativas ou presenciais, decidiram elaborar uma série de visitas virtuais, disponíveis na página de Youtube do município. A presença de escolas, visitas guiadas e sessões de leitura criativa com os mais novos sempre foram uma virtude presente na Casa Bocage, contudo, agora recorre-se ao uso da imagem, reportagem, vídeo, para que se possa continuar a fomentar esta dinâmica, e apaziguar um pouco os danos que a pandemia trouxe consigo.

   Embora não seja possível reparar a enorme perda de visitantes, especialmente turistas, que anteriormente visitavam o espaço com regularidade, o online permitiu restaurar a relação com o público nacional, e acima de tudo, manter uma relação com os jovens e a educação.

      O papel de Bocage é ainda hoje um papel ativo, e embora o seu caráter irreverente, e inconformado, o mantenha longe dos planos nacionais de leitura, continua a ser um autor que muito professores, especialmente na região, gostam de ensinar, claro está que o interesse é menos estimulado, mas quando surge, não é por obrigação, é muito mais genuíno.

     Bocage é um autor presente na cultura da região nacional, e claro, de Setúbal. Para lá das escolas, as dinâmicas e a presença inquestionável do autor em toda a tradição popular fazem dele um autor intemporal, e que reflete nos seus poemas problemas sociais que claramente nunca se resolveram, e que são ainda hoje, realidades incontestáveis.

 

     É importante reforçar o papel do segmento de Américo Ribeiro, que é um complemento para a casa Bocage, uma vez que este foi "o" fotógrafo de Setúbal desde os anos 30 até meados dos anos 80 e por isso, acaba por ser uma grande fonte de turismo e valorização. São realidades que se complementam bem.

CASA FERNANDO PESSOA: “Os legados não são coisas inertes e silenciosas”

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      Em Campo de Ourique, encontra-se a última morada de Fernando Pessoa. A partir do apartamento onde passou os últimos 15 anos da sua vida, temos agora a imortalização do seu viver. Da sua biblioteca particular à secretária onde escrevia os seus poemas, as obras levaram a que se deixasse residir Pessoa na modernidade trazida pela tecnologia.

      A casa conta com quatro pisos. No terceiro, por onde começa a visita, temos a exposição da obra do autor, onde se explicam os heterónimos e o homónimo. Segue-se o andar com a sua coleção de livros e exposições temporárias. Já perto do fim, entramos na sua casa: uma reconstrução do apartamento e parte da história. Por fim, o rés-de-chão, conta com a entrada, sala de conferência, livraria e um restaurante. Clara Riso, a presidente da casa-museu, descreve-a como “um ponto de encontro em torno dos livros, da leitura, da escrita”. 

     Da imagem à escrita, compreende-se o impacto que Fernando Pessoa teve, quer no antigamente quer à luz dos dias de hoje. As suas palavras estão cunhadas nas leituras obrigatórias, o que leva a que o primeiro contacto dos jovens com a sua criação seja ainda no ensino básico. Nesse sentido, há também uma preocupação da Casa com este público: “procuramos através do trabalho que fazemos estabelecer uma relação diferente da que acontece em aula.” Procuram entender quem é o visitante: se conhece o autor a fundo ou se nunca se tinha debruçado sobre Pessoa. O diálogo é assim feito à medida de quem vem descobrir o poeta. As escolas retratam uma pequena parte da sua obra, mas na casa dá-se a conhecer a sua grande dimensão. E é nesse sentido que se abrem as portas para o online.

 

     Nos corredores, os visitantes estão limitados: quer pela lotação máxima de cinco pessoas quer pelo travão no turismo internacional. “As pessoas circulam menos, viajam menos. São aconselhadas a não sair de casa.”, o que para Clara explica a redução no público. Preside a casa há sete anos, e as alterações foram vistas. Além das obras que renovaram as divisões, temos novas instalações na web. O projeto não é fruto da pandemia, mas a vinda para casa levou a que o trabalho se solidificasse.

     Para já, os visitantes internacionais não foram o foco. A produção de conteúdos digitais esteve centrada no nacional. Exceção foram as Coisas para Ouvir, onde se declamam pequenos textos do autor. Aqui, tiveram a perceção da procura da voz de Fernando Pessoa pelo mundo e tomaram a iniciativa de, ainda na língua portuguesa, ter “chamadas para o Brasil”.

     Procuraram ir ao encontro das pessoas com a idade escolar, que tiveram o contacto reduzido com a literatura académica. Os mais pequenos foram os que mais tempo passaram tempo fechados, e a Casa Fernando Pessoa tentou “perceber como é que se podia promover um encontro familiar que pudesse ser entusiasmante nestes tempos que eram bastante desmotivadores para todos.”

     Os ecos de Pessoa prosperaram postumamente. Ainda nos dias de hoje, promove novas leituras, sensações e estímulos. A reivindicação encontrada na obra mantem a atualidade: continuamos a batalhar contra ideologias extremistas e, muitos dos escritos do autor, continuam tão relevantes quanto na sua criação. As reflexões sobre o mundo são tão pertinentes quanto o eram há cem anos. Num trabalho feito sob a tutela do IGEAC, a Casa Fernando Pessoa continua a dar vida ao autor e a garantir que não nos esquecemos da sua mensagem.

Casa dos Bicos: “Nunca foi um autor que estivesse num pedestal”

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     José Saramago foi um escritor português galardoado com o prémio Nobel de Literatura em 1998 e o Prémio Camões em 1995, o mais importante prémio de literatura em língua portuguesa.  O seu escritório, a partir do qual uma vista magnífica se abre sobre a zona ribeirinha com barcos a flutuar. Poderia ter sido um dos lugares privilegiados de escrita de Saramago, não tivesse morrido dois antes da abertura da casa. “Quando lhe disseram qual era o espaço, que é um gabinete que tem uma janela virada para o rio, ele ficou muito comovido.”, diz Sérgio Letria.

     A câmara municipal de Lisboa cedeu à Fundação José Saramago os pisos superiores da Casa dos Bicos, reservando o rés-do-chão para a musealização de vestígios arqueológicos. Com a metamorfose no interior do edifício, a Fundação atestou a vontade de construir mais um lugar simbólico para valorizar o património literário de Saramago. Desde que abriu portas, tem preservado e divulgado a obra do escritor.

     No interior, entre a biblioteca com o acervo dos livros mais íntimos de Saramago (ainda por inaugurar), a máquina de escrever antiga, várias edições da sua obra, as fotografias com um efeito retro ao mais puro estilo das últimas décadas do século passado ou ainda a loja psicodelicamente guarnecida de roupas, acessórios, souvenirs e, claro, livros. A Fundação está decorada numa mistura eclética de estilos e materiais. É um lugar de nostalgia, onde se solidificam as memórias e se cruzam os tempos do escritor com os nossos. 

     A Casa dos Bicos e a Fundação José Saramago são lugares de desenvolvimento cultural, social e turístico que a zona da ribeirinha alberga. Participam do processo da inovação da imagem de um território em torno de um elemento patrimonial. E como a fachada, do genótipo do Palácio dos Diamantes, é o que dá o nome à casa. A arquitetónica não passa despercebida pelos turistas. A Casa dos Bicos, que acolhe a Fundação, é um lugar que interessa à história, à literatura e à cultura. Mas também às autoridades locais que a consideram um ponto de referência do itinerário cultural da cidade. “É um fator de atração de mais visitantes para a fundação e eu acho que é uma situação muito vantajosa para nós, fundação, mas também para a câmara de Lisboa."

     Com práticas turísticas diversificadas e em evolução, fazem com que cada vez mais pessoas atravessem as suas portas do setor da cultura, que foi afetado pela Covid-19. Até ao início da pandemia, a fundação acolhia “50% estrangeiros, 50% portugueses.” Depois teve quebras de visitantes que rondaram os 90% e, sendo uma entidade privada que não recebe subvenções públicas, também não recebe nenhum apoio financeiro do Estado.  “Portanto, a fundação vive com um terço dos direitos de autor da obra do José Saramago - que ele definiu que seria assim o financiamento da fundação - e, desde que aqui estamos, também, obviamente as receitas de bilheteira e da livraria.”, afirma Sérgio Letria. 

     Para colmatar os “constrangimentos orçamentais”, numa primeira fase do confinamento, os trabalhadores migraram para o online, dando o “seu trabalho de forma livre” para que as pessoas pudessem se cultivar, mesmo estando em casa. Já na segunda fase, “o que nós começamos a fazer aqui foram concertos em que as pessoas compraram um bilhete online. O dinheiro nunca ficou para a fundação, era para essa entidade, essa plataforma, que promoveu aqui vários concertos, com músicos de jazz, etc., entre outros. Leituras também.”

     Relativamente à educação, os jovens podem encontrar nos livros de Saramago novas formas e novas respostas para as questões que muitas vezes têm. No entanto, José Saramago acreditava que a leitura não devia ser obrigatória, uma vez que quando uma pessoa se vê obrigada a fazer qualquer coisa, não o fará por prazer, haverá uma resistência.

Maio de 2021 por Andreia Simão, Mariana Serrano e Paula Suaila

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